Caro Richard.
É muito difícil saber como e por onde começar. Estive pensando por muito tempo e a fundo, através de muitas idéias, tentando encontrar um meio. Finalmente me ocorreu uma pequena idéia, uma metáfora musical, através da qual pude pensar claramente e encontrar a compreensão, se não mesmo a satisfação. Quero partilhá-la com você. Assim, por favor, peço que me tolere, enquanto passamos por outra lição musical. A forma mais comumente usada para as grandes obras clássicas é a da sonata. É a base de quase todas as sinfonias e concertos. Consiste em três partes principais: a exposição ou abertura, em que pequenas idéias, temas e miscelâneas diversas são lançados e apresentados uns aos outros; o desenvolvimento, em que essas pequenas idéias e motivos são explorados ao máximo, expandidos, muitas vezes passando do tom maior (feliz) para menor (infeliz) e voltando sendo desenvolvidos e entrelaçados em complexidade maior, até que finalmente vem a recapitulação, em que existe uma reapresentação, uma gloriosa expressão da maturidade plena e rica que as pequenas idéias não alcançam através do processo de desenvolvimento. Você pode se perguntar como isso se aplica a nós, se ainda não percebeu. Eu nos vejo embatucados numa abertura interminável. A principio, foi a coisa real, pura delicia. É a parte de um relacionamento em que a pessoa se mostra em seu melhor: divertida, encantadora, excitante, excitada, interessante, interessada. É um tempo em que à pessoa se sente mais tranqüila e mais cativante, porque não experimenta a necessidade de levantar suas defesas; assim, o parceiro aconchega um ser humano afetuoso, ao invés de um cacto gigantesco. É um tempo de prazer para ambos e não é de se admirar que você goste tanto de aberturas que se empenhe em tornar a sua vida uma sucessão delas.
Mas os primórdios não podem ser prolongados interminavelmente; não podem simplesmente serem expostos e re-expostos. Devem seguir adiante e se desenvolverem, ou morrer de tédio. Não é assim, você diz. Deve se afastar, ter mudanças, outras pessoas, outros lugares, a fim de que possa voltar a um relacionamento como se fosse novo, para ter constantes princípios novos. Nós seguimos adiante numa sucessão prolongada de reaberturas. Algumas foram causadas por separações profissionais que eram necessárias, mas se mostraram desnecessariamente duras e rigorosas para duas pessoas tão chegadas como nós. Algumas foram fabricadas por você, a fim de dispor de mais oportunidades de voltar à novidade que tanto deseja. Obviamente, a parte do desenvolvimento é uma anátema para você. Pois é a parte em que você pode descobrir que tudo que possui é uma coletânea de idéias bastante limitadas que não funcionam, não importa quanta criatividade lhes acrescente. Não resta a menor duvida de que fomos muito mais longe do que você jamais tencionou. E paramos pouco antes do que eu considerava como nossos próximos passos, lógicos e maravilhosos. Tenho testemunhado o desenvolvimento com você continuamente contido, passei a acreditar que nunca faremos mais que tentativas esporádicas em nosso potencial de aprendizado, em nossas espantosas similaridades de interesses, não importa quantos anos possamos ter, porque nunca teremos um tempo ininterruptos juntos. Assim, torna-se impossível o crescimento que tanto prezo e sei que é possível.
Ambos tivemos uma visão de algo maravilhoso que nos aguardara. Contudo, não podemos chegar lá, a partir do ponto em que nos encontramos. Estou diante de uma sólida muralha de defesas e você tem necessidade de construir mais e mais. Anseio pela plenitude do desenvolvimento adicional e você procurará meios de evitá-lo, enquanto estivemos juntos. Nós dois ficamos frustrados; você é incapaz de voltar, e eu incapaz de seguir adiante, num estado de constante luta, com nuvens e sombras escuras sobre o tempo limitado que você nos concede. Sentir a sua constante resistência a mim, ao crescimento deste algo maravilhoso, como se eu e isso fôssemos alguma coisa horrível. Experimentar as várias formas que a resistência assume, algumas cruéis, muitas vezes me causa sofrimento, em um nível ou outro. Tenho um registro de nosso tempo juntos e fiz uma análise profunda e sincera. Entristeceu-me a até me chocou, mas foi-me útil para enfrentar a verdade. Recordo primeiro ano e os três primeiros meses como nosso único período feliz. Isso foi a abertura, e foi linda. Depois, houveram as separações, com os desligamentos arrebatados e para mim inexplicáveis e a igualmente terrível evitação-resistêncial em sua volta. Longe e apartados ou juntos e apartados é uma situação por demais infeliz. Estou me observando virar uma criatura que chora muito, pois quase parece que a compaixão é necessária antes que a bondade seja possível. E sei que não cheguei até este ponto da minha vida para me tornar digna de compaixão. Encarando os fatos tão honestamente quanto me é possível, sei que não posso continuar, não importa o quanto deseje; não posso me inclinar ainda mais.
Espero que você não considere isso como o rompimento de um acordo, mas sim como a continuação de muitos e muitos finais que você tem iniciado. Acho que é uma coisa que ambos devemos saber. Eu devo aceitar que fracassei em meu esforço de fazê-lo conhecer as alegrias da afeição. Richard, meu precioso amigo, isto é dito suavemente, até mesmo ternamente, e com amor. E os tons suaves não servem para camuflar uma raiva por trás; são autênticos. Estou simplesmente tentando compreender e estancar a dor. Estou enunciando o que fui forçado a aceitar: que você e eu nunca teremos um desenvolvimento, muito menos a gloriosa expressão climática de um relacionamento desenvolvido ao máximo. Tenho sentido que se alguma coisa em minha vida merece um afastamento de padrões anteriormente estabelecidos, indo além de todas as limitações conhecidas, foi justamente o nosso relacionamento. Suponho que poderia justificar por me sentir humilhada por todos os meus esforços para que desse certo. Em vez disso, porém, sinto-me orgulhosa de mim mesma e contente por saber que conheci a rara e maravilhosa oportunidade que desfrutamos enquanto a tivemos. Dei tudo o que eu podia, no sentido mais puro e elevado, a fim de preservá-la. É o que me conforta agora. Neste momento horrível do final, posso sinceramente dizer que não conheço nenhuma outra coisa que poderia fazer para nos levar ao lindo futuro que poderíamos ter.Apesar do sofrimento, estou feliz por tê-lo conhecido desta maneira tão especial e sempre guardarei na memória o tempo que passamos juntos.
Cresci com você e aprendi muito. Sei que também fiz grandes e positivas contribuições a você. Ainda sou sua amiga, como espero que você um dia possa vir a ser meu amigo. Envio esta carta com um coração repleto do mais profundo e terno amor, com toda a consideração que tenho por você, impossível de ignorar, além de um imenso pesar por ficar incumprida uma oportunidade tão cheia de promessa, tão rara e tão bela.
Leslie Parrish Carta de Leslie Parrish a Richard Bach. Achei a íntegra da carta aqui, mas sei que ela foi publicada em um dos livros de Bach. Completo a informação assim que obtiver mais detalhes.
2 comments on “Sobre o fim, muralhas e aberturas”